Valongo: xilogravuras de Fabrício Lopez
O trabalho que Fabrício Lopez tem desenvolvido nos últimos anos opera num sistema de pontos nevrálgicos.
Seu ateliê no Valongo, bairro da cidade de Santos, onde constrói a gravura que aqui se apresenta, é ilha circundada pelo labor das orientações que ministra nos ateliês por onde transita; suas reflexões particulares são revistas pelas ações coletivas das quais participa ativamente desde os tempos da escola de arte. Ou seja, o trabalho solitário é tencionado pelos ecos das empreitadas coletivas em atividades cruzadas. E essa situação não é um precário a ser dirimido quando se cumprir, num hipotético futuro próximo, a missão da obra individual. Aqui, os trânsitos e os fluxos entre o pessoal e o coletivo são desejados e necessários na combustão das vivências propostas pela experiência artística. O mesmo vale para o lugar que a gravura quer ocupar nessa trajetória. Os impressos buscam aderir às paredes das casas e aos muros da cidade. Querem circular como volantes e publicações da gravura como escritura, quando a estampa quer fundir-se à imensidão dos impressos da cidade contemporânea. Por isso, a escala raramente é diminuta, já que quando é, troca a dimensão pela multiplicação. Assim, em ambas as atitudes a fatura e a visibilidade acompanham o desenho dos destinos que desejam.
Trata-se de pensar essas imagens sempre como duplos: como objetos materiais, que constituem um ambiente visual, e justificam sua escala como um modo de pertencerem ao mundo no qual se instalam; ao mesmo tempo, trata-se de estarmos defronte dessas imagens como pertinentes ao domínio imaterial e temos os motores de sua imaginação, de seus esquemas, modelos, de sua fantasia, da visão crispada das passagens por elas propostas. Os espelhamentos da gravura encontram eco nessa trajetória e vislumbrados pelo ritmo no qual pulsam, depõem e decompõem imagens pelo prisma móvel de um caleidoscópio atento. Com esse instrumento, madeiras, ferramentas, tintas e papéis são contíguos aos sonhos, aos compromissos e ao pó que alimentam essas empreitadas circulares, gestadas e gravadas.
Nessa exposição, as gravuras ocupam as paredes em clave já mencionada. Rivalizam com a pintura mural, com o painel e o baixo relevo, dialogando com a história da estampa ocidental quando essa cumpriu esse papel na gravura monumental dos séculos XV e XVI, momento em que a xilogravura e a gravura em metal, ainda no calor do nascido, arregimentaram suas potencialidades técnicas e poéticas e permearam tanto o espaço do livro impresso, aparato novo, quanto emularam os modelos clássicos romanos de decoração mural, colocando-os no universo das imagens repetidas. O trabalho de Fabrício Lopez não ignora essa tradição, quando articula impressões, fundindo-as com os suportes, apondo as estampas que se tornam afrescos móveis e repetíveis as matrizes momentaneamente fossilizadas, tornando madeira e papel lugares cromáticas. Nas paredes da exposição, cor e cortes dançam nas figuras e através delas; dançam as imagens incisas e através da irisação que nelas se instalou. Tudo temperado por um equilíbrio sutil entre uma certa monumentalidade da escala e o fragmentado de suas estruturas.
Se pensarmos na história da arte no Brasil, esse trabalho gráfico é detentor de diálogos agudos com os artistas de sua geração e com alguns mestres da gravura brasileira. A fatura direta e medida, onde o corte determina e singulariza o espaço, assim como o uso particular da cor xilogravada, leva-nos ao encontro da obra de Oswaldo Goeldi; as inflexões com relação à escala da estampa nos dirigem o olhar para a obra de Maria Bonomi; a vontade dos impressos ocuparem lugares inusitados traz o trabalho de Regina Silveira como uma referência; a itinerância, como motor da obra, a estampa como fato único e repetível, a visão do lugar e a interinidade do olhar remetem à gravura de Evandro Carlos Jardim; só para citar algumas fontes. E não falo aqui de filiações estilísticas, mas de um ambiente, uma paisagem sobre a qual se pode caminhar. Isso talvez nos confirme um horizonte já mais nítido e aparatoso que a gravura no Brasil construiu, mesmo de história tão breve, legando aos artistas contemporâneos um rico rol de reflexões, que ultrapassa o limite da gravura enquanto um conjunto de procedimentos, colocando‑a como indagação, como detentora de uma conjunção de proposições a qual temos que responder.Além e aquém disso, o trabalho de Fabrício Lopez na fatura e na postura tem sutis reverberações com as estampas populares e com os lambe-lambes urbanos. E essas relações não se dão somente no plano formal, são mais fundas. São noções e vocações engendradas pela convivência com e através das obras, por suas andanças e pela partilha de sensibilidades. O que nos leva de volta à visada da construção de uma figuração fragmentada, cacos visuais da memória dos lugares e das vivências desses lugares, onde o precário é alimento; onde desenho, corte e cor se alternam continuamente, numa espécie de teatro permanente, de vertigem quase muda, com personagens tão raras quanto comuns.