Lições de simplicidade

O que é que estes dois estão fazen­do jun­tos aqui?

A não ser pela arte a que ambos se dedi­cam, a xilo­gra­vu­ra, bem pou­ca coi­sa eles têm em comum. Pres­tes a com­ple­tar cin­quen­ta anos de ida­de, J. Miguel, o per­nam­bu­ca­no José Miguel da Sil­va, vive e tra­ba­lha em Bezer­ros, cida­de de 60 mil habi­tan­tes a uma cen­te­na de quilô­me­tros do Reci­fe, e o que pro­duz cos­tu­ma ser clas­si­fi­ca­do como arte popu­lar, povo­a­da de temas e per­so­na­gens do fol­clo­re e do Nor­des­te brasileiro.

Fabri­cio Lopez, por seu tur­no, mal entra­do nos trin­ta, vive no eixo bem mais cos­mo­po­li­ta de São Pau­lo e San­tos, sua cida­de natal. E, embo­ra não se sin­ta con­for­tá­vel no rótu­lo, é como artis­ta eru­di­to que em geral o veem, e não exa­ta­men­te pelos títu­los uni­ver­si­tá­ri­os que tem em seu cur­rí­cu­lo. J. Miguel cava na madei­ra ima­gens de peque­nas dimen­sões, por vezes limi­ta­das aos 16 x 11,5 cm de um folhe­to de cor­del. Fabrí­cio, ao con­trá­rio, gra­va­dor que vem da pin­tu­ra e da cri­a­ção de cená­ri­os, cada vez mais se espraia em gran­des for­ma­tos, como os 2,20 x 4,80 m de um de seus tra­ba­lhos nes­ta exposição.

Se estão jun­tos aqui, é jus­ta­men­te em razão de suas dife­ren­ças – para que, pos­tas lado a lado, entre a obra de um e de outro se bus­quem aproximações.

Nes­sa pro­pos­ta de diá­lo­go, par­tiu-se do zero: os dois artis­tas não se conhe­ci­am até o final de janei­ro des­te ano, quan­do, com vis­tas a uma pos­sí­vel mos­tra con­jun­ta, pro­vi­den­ci­ou-se o pri­mei­ro con­ta­to entre eles.

Resul­tou mais fácil que Fabri­cio fos­se até J. Miguel em Bezer­ros do que este des­cer até San­tos, ao amplo ate­liê que o jovem cole­ga man­tém na sobre­lo­ja de um velho pré­dio no Valon­go, o bair­ro onde há 464 anos a cida­de come­çou a nas­cer. Leva­va uma ideia que viria alar­gar o esco­po e o alcan­ce da expo­si­ção: ima­gi­na­da no iní­cio como jus­ta­po­si­ção de dois uni­ver­sos, o popu­lar e o eru­di­to, quis Fabri­cio que hou­ves­se entre eles uma pon­te, sob a for­ma de xilo­gra­vu­ras cri­a­das a qua­tro mãos.

Foi essa ambi­ção que ocu­pou os dois artis­tas ao lon­go de seis dias, nos quais tra­ba­lha­ram das sete horas da manhã às cin­co da tar­de, aban­ca­dos a uma com­pri­da mesa na Casa de Cul­tu­ra Ser­ra Negra, em Bezer­ros, às mar­gens da BR-232, que liga o Reci­fe a Par­na­mi­rim. Não se tra­ta exa­ta­men­te de um ate­liê, mas de uma anti­ga ofi­ci­na grá­fi­ca, pos­ta de pé em 1986 pelo padras­to de J. Miguel, José Fran­cis­co Bor­ges (1935), o J. Bor­ges, fun­da­dor e figu­ra cen­tral de uma ver­da­dei­ra dinas­tia de xilo­gra­va­do­res – mais do que isso, prin­ci­pal res­pon­sá­vel pela con­ver­são de Bezer­ros num impor­tan­te polo de pro­du­ção de arte popu­lar. Hoje a feia casa tér­rea é mais loja que ate­liê, aos cui­da­dos dos filhos artis­tas do velho Bor­ges, que pou­co apa­re­ce ali, reco­lhi­do – mas ain­da ati­vo –, cen­te­nas de metros adi­an­te, nas mar­gens da mes­ma estra­da, a um memo­ri­al que leva seu nome.

Fabri­cio che­gou a Bezer­ros ani­ma­do com a pos­si­bi­li­da­de de que a expe­ri­ên­cia con­jun­ta vies­se a con­tri­buir para diluir as fron­tei­ras entre o popu­lar e o eru­di­to – fron­tei­ras que, para ele, são mais “coi­sa ima­gi­na­da, cri­a­da”. A seu ver, “tem ima­gem que fun­ci­o­na e ima­gem que não fun­ci­o­na; tem ima­gem ori­gi­nal, que par­te de um impul­so cri­a­dor, e tem ima­gem mecâ­ni­ca”. Para o jovem artis­ta e pro­fes­sor, “é na ima­gem que a coi­sa se resolve”.

Se para ele aque­las fron­tei­ras são algo pelo menos dis­cu­tí­vel, por outro lado não era o caso de ten­tar igno­rar as dife­ren­ças entre o seu tra­ba­lho e o de J. Miguel, e, mais ain­da, entre os pro­ces­sos de cri­a­ção de um e outro. Impli­ca­ria, cla­ro, cada um sair um pou­co de seu tri­lho habi­tu­al – des­lo­ca­men­to que, pen­sou Fabri­cio, pode­ria ser mui­to posi­ti­vo, na medi­da em que pro­vo­cas­se em ambos o esti­mu­lan­te “des­con­for­to” que por vezes bro­ta das “situ­a­ções adversas”.

Embo­ra con­fi­an­te, Fabrí­cio não tar­dou a se dar con­ta de que havia difi­cul­da­des pela fren­te. Para come­çar, J. Miguel não ficou exa­ta­men­te empol­ga­do com a pos­si­bi­li­da­de de pro­du­zir xilo­gra­vu­ras a qua­tro mãos. Na sóli­da esco­la de J. Bor­ges, não é assim que se tra­ba­lha. Na ver­da­de, tudo era dife­ren­te entre ele e o moço recém-che­ga­do do Sul do país, do reper­tó­rio ao papel com que se impri­me. Entre os gra­va­do­res de Bezer­ros se usa ape­nas sul­fi­te – nada a ver com as sofis­ti­ca­das alter­na­ti­vas que Fabri­cio levou na baga­gem, o Fabri­a­no Rosas­pi­na, de algo­dão, e as vari­a­ções de kozo, papel japo­nês fei­to a par­tir das fibras lon­gas de um arbus­to. Nenhu­ma das duas, fez saber J. Miguel logo de saí­da, se pres­ta­va ao méto­do de impres­são vigen­te em Bezer­ros, onde, em vez de pren­sa, se empre­ga colher de pau e um tos­co e enge­nho­so “car­ri­nho”, como o ins­tru­men­to foi bati­za­do, no qual cilin­dros de man­guei­ra atra­ves­sa­dos por num eixo de metal rolam e pre­mem o papel para decal­car a imagem.

E não era só. Nos usos e cos­tu­mes locais, as cores numa xilo jamais se sobre­põem, estão sem­pre jus­ta­pos­tas. Foi o que J. Miguel apren­deu ven­do o padras­to tra­ba­lhar, e foi assim que, aos dez anos de ida­de, pela pri­mei­ra vez cavou madei­ra para cri­ar xilo­gra­vu­ra. Ou mes­mo antes, infor­ma o velho Bor­ges, que se lem­bra de Miguel aos cin­co anos a arris­car ima­gens na super­fí­cie de reta­lhos apa­nha­dos no chão do ate­liê paterno.

Aque­la foi a sua esco­la, e aque­la foi a sua sor­te, cres­cer à som­bra de um mes­tre – o qual, como se sabe, se fez sem o bene­fí­cio de som­bra algu­ma, já nos seus vin­te anos, no mais desam­pa­ra­do auto­di­da­tis­mo, pela neces­si­da­de de ilus­trar cor­déis para ganhar a vida. “Entrei na arte no escu­ro”, cos­tu­ma dizer J. Bor­ges – e, para pro­var que não está exa­ge­ran­do, con­ta uma his­tó­ria: já com algum cami­nho anda­do, ele nem sequer sabia que sua arte se cha­ma­va xilo­gra­vu­ra, teve que ir ao dici­o­ná­rio quan­do ouviu a pala­vra pela pri­mei­ra vez.

Tudo o que sabe, J. Miguel apren­deu com o padras­to, de quem, já qua­se cin­quen­tão, com modés­tia que não é para ser leva­da mui­to a sério, ain­da se decla­ra “esta­giá­rio”. E, ten­do apren­di­do com ele, nun­ca pôs cor sobre cor.

Não é por aí que vai Fabri­cio Lopez, afei­to, ao con­trá­rio, a cons­truir a ima­gem por meio de suces­si­vas cama­das colo­ri­das, que tan­to se somam como se anu­lam. Para ele, há nis­so um pou­co de brin­ca­dei­ra, até, um carim­bar meio lúdi­co, por vezes gui­a­do não pela pre­ten­são de che­gar a um lugar deter­mi­na­do, e sim pelo gos­to da aven­tu­ra. Quan­to à even­tu­al inter­ven­ção de mãos alhei­as em tra­ba­lho seu, acha que ela pode até ser bem-vin­da. Con­ta que fre­quen­te­men­te lhe acon­te­ceu de cri­ar jun­to com outros artis­tas jovens, nos pro­je­tos cole­ti­vos de que par­ti­ci­pou des­de bem moço, como o Espa­ço Corin­ga, de São Pau­lo, essen­ci­al à sua for­ma­ção. É algo que ele esti­mu­la, por exem­plo, no Ins­ti­tu­to Acaia, tam­bém na capi­tal pau­lis­ta, onde tem sob sua res­pon­sa­bi­li­da­de um ate­liê de xilogravura.

Fabrí­cio está con­ven­ci­do de que assim se pode refor­çar a indi­vi­du­a­li­da­de e, ao mes­mo tem­po, pro­mo­ver uma bem dosa­da dilui­ção do autor.

“O que pode nas­cer da jun­ção de nós dois?”, inda­ga ele. “O que pode nas­cer de algo que não é só meu nem só seu, mas que é par­te cons­ti­tu­ti­va do que nós dois esta­mos cri­an­do?” O bate-bola é até didá­ti­co, defen­de ele, na medi­da em que aju­da o artis­ta a “cons­truir uma obra que tenha saú­de, que não este­ja encar­ce­ra­da em si mes­ma”. Fabri­cio expli­ca: “Aju­da a saber quan­do é que você dá um mer­gu­lho soli­tá­rio, con­se­gue ir lá no fun­do e reco­lher aque­la con­chi­nha mais pre­ci­o­sa e, já meio sem ar, tra­zê-la até a super­fí­cie, e quan­do, ao con­trá­rio, você depen­de do outro para resol­ver pro­ble­mas que sozi­nho não seria capaz de solu­ci­o­nar”. Esse fazer jun­tos, diz Fabri­cio, “é mui­to impor­tan­te na cri­a­ção, inclu­si­ve para não cri­ar redu­tos de ego”.

Fácil não é, como ele pró­prio pôde uma vez mais cons­ta­tar naque­les dias em Bezer­ros – duran­te os quais, aliás, não fal­ta­ram obs­tá­cu­los a supe­rar. Um deles, de ordem prá­ti­ca, foi con­se­guir mate­ri­al para cavar.

Após mui­to rodar pela cida­de, tudo o que se achou foram peças de piqui­riá, madei­ra ingra­ta, de car­ne dura, e que ain­da por cima não esta­va total­men­te seca. Bem dife­ren­te do lou­ro-cane­la com que J. Miguel tem tan­ta inti­mi­da­de, e mais ain­da da ini­gua­lá­vel umbu­ra­na, ou imbu­ra­na, macia, coo­pe­ra­ti­va. Mas o que se tinha era piqui­riá, e com ele os dois artis­tas se lan­ça­ram ao tra­ba­lho, que aos pou­cos come­çou a andar. “Eu vou fazer um fun­do”, suge­riu Fabrí­cio numa pon­ta da mesa, “e você faz uma ima­gem para ir sobre­pos­ta à minha, em pri­mei­ro pla­no.” O ris­co, lem­bra ele, era que daí nas­ces­sem ima­gens de natu­re­za tão dis­tin­ta que fos­sem incom­pa­tí­veis, “como água e óleo”.

Mas não: sobre a flor ver­me­lha de Fabri­cio pou­sou sua­ve o bei­ja-flor de J. Miguel, no que tal­vez seja a mais bem-suce­di­da das qua­tro xilo­gra­vu­ras que os dois cri­a­ram em Bezer­ros. “Tinha que ser bei­ja-flor para dar cer­to”, ale­grou-se J. Miguel, por fim embar­ca­do na aven­tu­ra que iní­cio o dei­xa­ra de pé-atrás, e que para Fabri­cio Lopez não foi menos gra­ti­fi­can­te. “A coi­sa é meio bati­da”, resu­me ele, “mas são lições de sim­pli­ci­da­de mes­mo: ver como o outro enten­de e faz uma coi­sa que você tam­bém gos­ta tan­to de fazer.”

Humberto Werneck é jornalista, cronista, contista e escritor brasileiro.