Selva

A mais tris­te nação
Na épo­ca mais podre
Com­põe-se de pos­sí­veis
Gru­pos de linchadores

Cae­ta­no Velo­so, O cu do mundo

            O pro­gra­ma de des­mon­te do Esta­do bra­si­lei­ro pelo gover­no de tur­no traz no bojo uma suces­são de atos e dis­cur­sos de vio­lên­cia e estu­pi­dez, que são pra­ti­ca­dos como se fos­sem o pró­prio exer­cí­cio da polí­ti­ca. Daí para fren­te, sobram indí­ci­os de um país rumo à bar­bá­rie. Por exem­plo: quan­do, ao lon­go de dois anos, entre 2020 e 2021, o núme­ro de mor­tes diá­ri­as decor­ren­tes des­sa pan­de­mia que está em cur­so atin­gia no Bra­sil pata­ma­res cho­can­tes; ago­ra, quan­do se mul­ti­pli­cam ata­ques e assas­si­na­tos com moti­va­ção tor­pe e revol­tan­te (por racis­mo, miso­gi­nia, homo­fo­bia, trans­fo­bia, dife­ren­ças ide­o­ló­gi­cas, dis­pu­ta por ter­ra e por ter­ri­tó­ri­os indí­ge­nas); e quan­do auto­ri­da­des escan­ca­ram um mis­to de sadis­mo e incom­pe­tên­cia ao tra­tar des­ses desa­pa­re­ci­men­tos. É o Bra­sil sen­do o cu do mundo.

            Nes­se país para­le­lo, suce­dem-se men­ti­ras e tra­pa­lha­das ofi­ci­ais, ações coor­de­na­das de des­trui­ção do meio ambi­en­te, o des­vir­tu­a­men­to de ins­ti­tui­ções e méto­dos admi­nis­tra­ti­vos, ame­a­ças rei­te­ra­das con­tra o Esta­do demo­crá­ti­co de Direi­to, o incen­ti­vo ao arma­men­to de cida­dãos, numa cumu­la­ção de cri­mes que não pare­cia pos­sí­vel. Mas, ao mos­trar que é, reduz em mui­to o hori­zon­te de expec­ta­ti­vas e pres­si­o­na o pre­sen­te para um esta­do de emer­gên­cia. É mes­mo de se per­gun­tar quan­do será ama­nhã ou outro dia. Por­que, tão estron­do­so quan­to o des­ca­la­bro, são o silên­cio e a inação.

            Pois bem: como fazer, então, uma mani­fes­ta­ção públi­ca, hoje, des­de o cam­po da arte que seja (não ape­nas, mas tam­bém) uma toma­da de posi­ção fren­te a esse qua­dro tétri­co? Com a fúria que o con­tex­to pro­duz e seu enfren­ta­men­to exi­ge, sem que as deci­sões de rea­li­za­ção do tra­ba­lho se desen­ro­lem somen­te rea­ti­vas. Com ope­ra­ções de cons­tru­ção que sejam fir­mes e, ao mes­mo tem­po, aber­tas a sig­ni­fi­ca­ções impre­vis­tas. Para que as pro­pos­tas se ende­re­cem e sejam ende­re­ça­das a luga­res ines­pe­ra­dos, para além do ins­tan­tâ­neo, do judi­ca­ti­vo e das pres­cri­ções, para além do cará­ter ilus­tra­ti­vo, do pan­fle­to e da pala­vra de ordem. Sem esva­zi­ar o sen­ti­do polí­ti­co do com­ba­te nem trair as moti­va­ções inter­nas ao trabalho.

            A expo­si­ção Sel­va, de Fabrí­cio Lopez, mobi­li­za-se por inda­ga­ções des­se tipo: sobre a as con­di­ções de pos­si­bi­li­da­de de efe­ti­var uma pre­sen­ça agu­da e rele­van­te (ape­sar do bai­xo alcan­ce popu­lar das artes visu­ais), sen­sí­vel e ima­gi­na­ti­va (que ultra­pas­se a dimen­são da expres­são pura­men­te sub­je­ti­va), em um cená­rio de urgên­ci­as. Inqui­e­ta­ções que se apre­sen­tam de saí­da na esca­la dos tra­ba­lhos, deno­ta­ti­va da voca­ção públi­ca e da von­ta­de de abran­gên­cia des­sa pro­du­ção. E não que este sejam tra­ba­lhos neces­sa­ri­a­men­te gran­des no tama­nho, tam­pou­co estão entre os mai­o­res já rea­li­za­dos pelo artis­ta. Mas tra­tam-se de obras vul­to­sas, pelas pro­por­ções em que se dão as rela­ções entre ima­gem, supor­te e arquitetura.

            Não pas­sa des­per­ce­bi­do, aqui, o fato de as ope­ra­ções de fei­tu­ra pre­en­che­rem e “san­gra­rem”, no geral, a super­fí­cie em que inter­vêm. Tam­bém não pas­sa bati­da a inten­si­da­de dos ele­men­tos, das linhas, das figu­ras, das suges­tões de figu­ras, por vezes intrin­ca­das, mas sem­pre vibran­tes. Nem é sem moti­vo que a dis­tri­bui­ção des­se con­jun­to pela gale­ria foi pla­ne­ja­da para tomar as pare­des. De fato, a expo­si­ção dis­põe-se no espa­ço com vigor, com peso – e até com cer­ta satu­ra­ção ou bru­ta­li­da­de. Nas vis­tas gerais, os tra­ba­lhos ligam-se facil­men­te uns com os outros. E a des­pei­to das par­ti­cu­la­ri­da­des de cada um, todos mos­tram um dina­mis­mo grá­fi­co que põe seus tra­ços em rico­che­te, em movi­men­ta­ções sinu­o­sas e para todas as dire­ções. No ambi­en­te, os fios se espa­lham, se espe­lham, reba­tem-se e se com­ple­tam, a cru­zar o espa­ço, de lá para cá, de cá para lá. Qua­se como se uma des­car­ga elé­tri­ca os atra­ves­sas­se e os esti­mu­las­se em cor­ren­te, em cone­xões vir­tu­ais des­pre­ga­das das paredes.

            O desas­sos­se­go e a ampli­dão dos inte­res­ses são notá­veis, ain­da, na lida de Fabrí­cio com lin­gua­gens, mate­ri­ais e pro­ce­di­men­tos diver­sos, em favor de solu­ções impu­ras, híbri­das, for­ma­das por mis­tu­ras e cru­za­men­tos. (Nes­se pon­to, não dei­xa de ser curi­o­so obser­var o vín­cu­lo tão for­te do nome de Fabrí­cio à prá­ti­ca da xilo­gra­vu­ra – afi­nal, lá se vão mais de 20 anos de tra­je­tó­ria dedi­ca­da à téc­ni­ca –, quan­do, na ver­da­de, essa asso­ci­a­ção não se deve a nenhum tipo de ape­go tra­di­ci­o­na­lis­ta, a nenhu­ma pre­o­cu­pa­ção em deli­mi­tar para pre­ser­var um domí­nio téc­ni­co espe­cí­fi­co, espe­ci­a­li­za­do, pró­prio a espe­ci­a­lis­tas, pelo contrário.)

            Entre as carac­te­rís­ti­cas prin­ci­pais da obra de Fabrí­cio Lopez está a dis­ten­são dos limi­tes da gra­vu­ra. Estão ope­ra­ções que incor­po­ram à pro­du­ção da xilo recur­sos de outras expres­sões; assim como ao lon­go do tem­po apa­re­cem na pro­du­ção pro­ces­sos que nem sequer pas­sam pela gra­vu­ra. De qual­quer modo, o tra­ba­lho de Fabrí­cio cos­tu­ma ser refe­ren­ci­a­do pela ampli­a­ção à esca­la mural das impres­sões de xilo­gra­vu­ra; por retra­ba­lhar e apre­sen­tar matri­zes de gran­de for­ma­to como supor­te final do tra­ba­lho; por explo­rar às últi­mas con­sequên­ci­as e de manei­ra hete­ro­do­xa, os mate­ri­ais, as fer­ra­men­tas e as dife­ren­tes eta­pas do pro­ces­so da xilo­gra­vu­ra; ou ain­da por incor­po­rar, nes­sas expe­ri­ên­ci­as, tam­bém os mate­ri­ais, as fer­ra­men­tas, os pro­ces­sos e os reper­tó­ri­os de outras lin­gua­gens das artes visu­ais – do dese­nho, da pin­tu­ra, da cola­gem, do rele­vo, da foto­gra­fia, da ins­ta­la­ção – e de outras mani­fes­ta­ções – do cine­ma, dos qua­dri­nhos, da literatura.

            Por meio de uma des­sas expe­ri­ên­ci­as o artis­ta che­gou à serie de rele­vos que dá títu­lo à mos­tra, Sel­va. Nes­sas obras, Fabrí­cio apre­sen­ta pela pri­mei­ra vez um tra­ba­lho com pin­tu­ra e enta­lhe sobre cha­pas de madei­ra (em tama­nho padro­ni­za­do pelo comér­cio) que não foram uti­li­za­das antes como matriz – e que foram, por­tan­to, ata­ca­das de saí­da para ser como se apre­sen­tam ago­ra. A “sel­va”, aqui, é uma vas­ti­dão cer­ra­da de pla­nos diver­sos, com ope­ra­ções que se ini­ci­am em mar­ca­ções fei­tas com car­vão, segui­das pelo nan­quim agua­do dis­tri­buí­do com roli­nho e pin­ceis e, depois ain­da, pelos cor­tes no supor­te fei­tos com a goi­va. No resul­ta­do, sur­gem os con­tras­tes: entre pre­tos com den­si­da­de dife­ren­tes, do car­vão e das tin­tas mais e menos lique­fei­tas; entre os pre­tos todos e a cru­e­za da madei­ra; entre o que ali vem do dese­nho, o que vem da pin­tu­ra e o que vem do enta­lhe, ao mes­mo tem­po imbrin­ca­dos e em nego­ci­a­ções constantes.

            A “sel­va” se aden­sa, assim, no atra­ves­sa­men­to e na super­po­si­ção des­sas man­chas, linhas e reen­trân­ci­as, que con­ver­gem para a for­ma­ção do que tal­vez seja uma pai­sa­gem som­bria, apa­ren­ta­da um pou­co com os cená­ri­os de fil­mes do expres­si­o­nis­mo ale­mão do come­ço do sécu­lo XX, pela pro­je­ção de som­bras retor­ci­das ou angu­lo­sas; apa­ren­ta­da, outro tan­to, com mon­ta­nhas e vege­ta­ções vapo­ro­sas do sumi‑e; e outro tan­to com os qua­dri­nhos de ter­ror japo­nês, por linhas que ser­pen­tei­am a exten­são da super­fí­cie, em ges­tos lar­gos, expres­si­vos ou repe­ti­ti­vos. O resul­ta­do é mes­mo bas­tan­te alu­si­vo, suges­ti­vo de coi­sas a prin­cí­pio dis­pa­ra­ta­das. A sequên­cia de qua­tro pai­néis, por exem­plo, tal­vez até sugi­ra o enca­de­a­men­to de ima­gens, de “toma­das”, as pas­sa­gens de um fenô­me­no a outro, de pla­ca a pla­ca, porém, sem fir­mar uma nar­ra­ti­va dis­cur­si­va, sem fixar a repre­sen­ta­ção de uma cena. Ao final, pre­va­le­cem as insi­nu­a­ções, que não são poucas.

            A for­ça da linha do dese­nho e os pro­ces­sos híbri­dos de rea­li­za­ção defi­nem tam­bém as Ano­ta­ções. Na expo­si­ção estão pre­sen­tes nove tra­ba­lhos da série, com­pos­ta até aqui por outros 11. As obras sur­gem de dese­nhos fei­tos com cane­ta esfe­ro­grá­fi­ca pelo artis­ta em um cader­no de notas diá­ri­as. As ima­gens sele­ci­o­na­das são então digi­ta­li­za­das, ampli­a­das e impres­sas, por meio do pro­ces­so seri­grá­fi­co, sobre teci­dos. Nes­ses sal­tos – de um tama­nho para outro, de uma mate­ri­a­li­da­de para outra – os dese­nhos adqui­rem exten­são e inten­si­da­de ambí­guas, ao adqui­ri­rem asser­ti­vi­da­de, em pro­je­ção com impac­to visu­al, enquan­to pre­ser­vam a natu­re­za espe­cu­la­ti­va do tra­ça­do rápi­do, de son­da­gem e ensaio.

            Em cada tela, está a impres­são de uma dupla de pági­nas do cader­no. Logo, cada ima­gem traz um ou dois dese­nhos (um, que ocu­pa as duas folhas, ou dois, que res­tam em atri­to ou inte­gra­ção). Esses são os tra­ba­lhos mais figu­ra­ti­vos da expo­si­ção, e o dado só inte­res­sa pela vari­e­da­de dos moti­vos esco­lhi­dos para repre­sen­ta­ção, o que aca­ba por refor­çar a diver­si­da­de tam­bém das solu­ções grá­fi­cas impli­ca­das na pro­du­ção. São reco­nhe­cí­veis, nas telas, figu­ras huma­nas, ani­mais, obje­tos, cenas de inte­ri­or domés­ti­co, pai­sa­gens. As incli­na­ções expres­si­o­nis­tas da pro­du­ção de Fabrí­cio Lopez pare­cem alu­dir a Ibe­rê Camar­go, Mar­ce­lo Gras­s­mann, Vânia Mig­no­ne. E a plu­ra­li­da­de segue com a alter­nân­cia entre dese­nhos car­re­ga­dos, den­sos, e outros econô­mi­cos; entre folha­gens e pai­sa­gens agres­tes, secas; entre, de um lado, cri­a­tu­ras e atmos­fe­ras fan­tas­ma­gó­ri­cas e mons­tru­o­sas e, de outro, a mate­ri­a­li­da­de obje­ti­va, fun­ci­o­nal, dos utilitários.

            Por inver­são, é pre­ci­so dizer, já per­to do fim do tex­to, que a expo­si­ção come­ça com um tra­ba­lho incon­for­mis­ta des­de o títu­lo. O cu do mun­do é uma obra em papel que traz a estam­pa de ima­gens espar­sas, pro­ve­ni­en­tes de fon­tes e de momen­tos vari­a­dos da pro­du­ção de Fabri­cio, espa­lha­das por um cam­po satu­ra­do de for­mas e cores, e impres­sas a par­tir de matri­zes per­di­das. Dis­tin­guem-se aqui a cabe­ça e o pes­co­ço de um gran­de cava­lo, uma peque­na cabra, uma luva ou uma mão espal­ma­da, uma figu­ra huma­na sen­ta­da, a estru­tu­ra de uma casa, um peque­no car­ro no can­to infe­ri­or direi­to, tal­vez alguns galhos de árvo­re na par­te supe­ri­or, tal­vez a silhu­e­ta de uma cri­a­tu­ra aver­me­lha­da tam­bém à direi­ta, mas a par­tir daí é chu­te, adivinhação…

            Seres, peda­ços de seres, coi­sas, pro­je­tos de coi­sas, apa­re­cem difu­sos e simul­tâ­ne­os em uma super­fí­cie com uma vas­ti­dão e uma capa­ci­da­de de con­ca­te­na­ção que são pró­pri­as ao sonho e à memó­ria – ins­tân­ci­as nas quais se cons­tro­em, se somam, se mis­tu­ram e se apa­gam sen­sa­ções, per­cep­ções e repre­sen­ta­ções. Inclu­si­ve o aspec­to de impres­são fora de regis­tro em áre­as de tra­ba­lho con­tri­bui para a ideia de que estas são figu­ras reu­ni­das em ima­gem men­tal: impre­ci­sa e bor­ra­da. A qua­li­da­de de colo­ris­ta de Fabri­cio Lopez tem aí, tam­bém, tra­ba­lho um pon­to alto. Os modos como rosa, ama­re­lo, ver­me­lho, laran­ja, ver­de, azul, pre­to, mar­cam áre­as, con­tor­nam e tin­gem figu­ras, as manei­ras pelas quais essas cores se jus­ta­põem e se sobre­põem (não só pela impres­são, mas tam­bém no uso do pin­cel), ou até por uma vela­du­ra que pare­ce cru­zar e lam­ber par­te da figu­ra do cava­lo, à esquer­da do papel, tudo isso man­tém um jogo ati­vo e inin­ter­rup­to de amar­ra­ções e desa­gre­ga­ções suces­si­vas, de ata­dos e des­con­jun­ta­dos, em pri­mei­ro, segun­do, ter­cei­ro, quar­to planos.

            Além des­se, outros dois tra­ba­lhos da expo­si­ção foram rea­li­za­dos a par­tir de matri­zes per­di­zes, Cha­ma maré e Dia par­ti­do. As ima­gens repor­tam a plan­tas, folhas, flo­res, a um desor­de­na­men­to de vege­ta­ções – na ver­de, com fres­cor, na ver­me­lha, com incan­des­cên­cia. Mas o desen­vol­vi­men­to daqui­lo que se apre­sen­ta é, por con­tra­di­ção, um esti­lha­ça­men­to de for­mas e figu­ras; ou, pela manei­ra como se dá a ver, na suges­tão de movi­men­tos impe­tu­o­sos, uma libe­ra­ção vio­len­ta de ener­gia. Por con­ta da con­fi­gu­ra­ção espa­ci­al da mos­tra, esses frag­men­tos ligam-se àque­las linhas aére­as, ner­vo­sas, meio pen­den­tes, mas em emba­ra­ço, que se des­pren­dem das cha­pas de Sel­va, a série. Já Sel­va, a mos­tra, fecha, assim, em cir­cui­to, uma estru­tu­ra­ção espes­sa, com­pac­ta e, mes­mo a con­tra­pe­lo do des­gas­te que a pala­vra atra­ves­sa, resis­ten­te. A pro­pó­si­to, esta expo­si­ção traz no títu­lo uma pala­vra que está na ordem do dia. Tan­to por desig­nar um dos bio­mas, hoje, sob ame­a­ça, quan­to pela refe­rên­cia, no sen­ti­do figu­ra­do, a esse lugar onde, por difi­cul­da­des, se luta por sobre­vi­vên­cia. Nas duas acep­ções, “sel­va” tem mui­to a ver com o Bra­sil de ago­ra, o cu do mun­do, esse nos­so sítio. 

José Augusto Ribeiro é curador de Artes Visuais. Mestre em Teoria, História e Crítica de Arte pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).