Entrevista de Cláudio Mubarac com Fabrício Lopez
Esta entrevista foi publicada no catálogo da exposição Valongo, na Estação Pinacoteca em 2009.
Fale de sua formação, entendendo formação no sentido mais amplo possível e não só acadêmico-escolar.
Logo me veio a imagem de quando tinha uns 11 anos e íamos pescar siri na praia, usando um puçá, uma espécie de rede e gaiola com uma certa isca especial. Os mais novos da turma por livre e espontâneo convencimento físico dos mais velhos, no caso eu e outros premiados devíamos passar na avícola e pegar tripa de galinha. Às vezes, dávamos sorte e só tínhamos que enfiar o braço em um latão cheio de restos, ou quando o latão estava vazio, o jeito era enfiar a mão dentro da galinha recém abatida. Todo esse rito valia cada siri pego na praia, em dias de pós ressaca do mar, dias cinzentos que terminavam na casa de um amigo com uma panela cheia. Para mim, a formação em um sentido mais integral está atrelada com este contexto, da cidade praiana, da leitura intensa de todo e qualquer tipo de gibi, das horas solitárias desenhando, e da produção das minhas próprias histórias.
Desde pequeno, tinha um profundo interesse pelo desenho, e aprendi a perpetuar o gosto pela imagem criada, por uma certa magia em ver algo existir à partir de uma vontade. Na adolescência decidi, acredito que de forma intuitiva, que queria ser artista, trabalhar com artes plásticas, mesmo sem saber ao certo o que isto implicava; comecei a pintar e fui adiante, agarrando-me a toda possibilidade de mostrar o que fazia, fosse produzindo histórias em quadrinhos para fanzines de amigos, ou pintando murais em feiras de moda.
Em paralelo ao desenho, a pintura, havia o esporte. Coisas como karatê e o futebol na praia nas tardes de sexta feira, depois da escola. Pode parecer bobagem, mas tiveram um grande efeito no gesto, no olhar, que de maneira sutil vejo aplicar no trabalho hoje em dia.
Antes de cursar Artes Plásticas, fiz dois anos de Comunicação Social que serviram em muito para ampliar o repertório sobre cinema, teatro. Lá, tive também uma ótima experiência com a produção de cenários para apresentações do curso de Rádio e TV, que algum tempo depois me valeriam trabalhos, rica experiências de aprendizado em teatro com o diretor Wolfgang Pannek, a montagem do Apocalipse com o Teatro da Vertigem e em televisão, trabalhando na TV Cultura no setor de efeitos especiais.
Depois de finalizar, o que imaginava como período de aprendizagem e fortalecimento de amizades presentes até hoje, interrompi o curso e entrei na FAAP. Era um momento de transição na instituição. Antes, o que era uma Fundação sem grades e de livre circulação, ganhava, aos poucos, um ar austero com escadarias de granito, corrimões dourados e mensalidades crescentes. Lá, conquistei o que precisaria para fundamentar minha relação com a produção artística: o conhecimento e confiança (muito importante!) transmitidos por alguns bons professores, e a amizade dos amigos, com quem pouco depois formaria o Espaço Coringa.
Esse grupo se fortaleceu à partir de uma vontade de concretizar um conjunto de instâncias autônomas de produção e difusão em artes plásticas. Nossas imersões em Santos, onde minha família tinha uma construção inacabada em um terreno à beira de um morro, foram inesquecíveis. Passávamos três meses indo sistematicamente para este lugar, carpir o mato, passar fiação elétrica, produzir os trabalhos para exposição, batucar. Tínhamos um oásis que fundamentou uma experiência coletiva que durou 10 anos. O grupo era formado por Anderson Rei, André Tranquilini, Chico Linares, Daniel Manzione, Guilherme Werner, Matheus Giavarotti, Rogério Nagaoka, Suiá Ferlauto e eu.
Quando realizamos o primeiro Espaço Coringa, convidamos o prof. Evandro Carlos Jardim e, incrível, ele aceitou! Foi para Santos em um dia nublado ver os trabalhos de todos os artistas e falar para cerca de 30 pessoas embaixo de uma lona esticada em uma laje. Certamente, aquele ato de fé estruturou todo um
pensamento sobre o porvir da iniciativa, fez germinar naqueles jovens de vinte anos algo poderoso que nos acompanha até hoje: tradição como transmissão de energia vital.
Tenho certeza de que esta iniciativa e a convivência com meus amigos formaram um lastro tão forte, um conhecimento construído à partir de uma coletividade que vejo transbordar em tudo que participo, na família e em outros trabalhos.
Nessa mesma toada, onde começa o Valongo pra você?
Hoje, o Valongo representa o adubo mais fértil da cidade de Santos. É um lugar com uma força telúrica incrível, de frente para o Estuário e para Serra do Mar. Foi onde a cidade começou, e onde permaneceu por mais de século antes de expandir-se para outras áreas e junto à orla. O desejo de instalar-se ali para produzir acompanha meus cadernos de anotação desde que vagava de bicicleta pelo Porto e arredores do centro histórico da cidade entre 1999 e 2003.
Não tenho um radinho no ateliê, não sei exatamente porque. Não levei música para lá e acabei me habituando ao silêncio. Um dia sem falar, ouvindo a respiração do porto, a hora marcada pela igreja e o apito do navio, um som penetrante que começa distante e chega até lá no fundo, produzindo uma sensação de bem estar, um tipo de som que aponta para um destino.
Por que e como a xilogravura é para você processo privilegiado e lugar para trabalhar?
Existe o impacto físico da construção do desenho e um tempo diverso da pintura, por exemplo. Às vezes, penso que realizei um movimento migratório da pintura para a madeira – porque, para mim, o lugar da xilogravura é a madeira – parece redundante, mas é o que me entusiasma, tanto quanto a cor.
Agora, quando penso a construção da matriz, as anotações com desenho na madeira e o corte da superfície, fico ainda mais entusiasmado! A matriz é uma peça de jogo visual. A exploração do desenho acontece de diversas formas, em associação com múltiplas referencias. A matriz possibilita ao desenho viver diversas vidas sobre diversas paisagens.
A relação com a escala, ocorre por necessidade do gesto alargado ou por substituição, onde talvez outros procedimentos caberiam? Ou ambas são questões relacionadas?
Por necessidade e por substituição. A relação com a escala na xilogravura foi também intuitiva, um hábito que trouxe das pinturas que fiz. Lembro que a primeira xilogravura de compensado inteiro foi na “Ação na Pagú” (1), em uma das celas que transformamos em ateliê. Lembro também que a impressão foi sanguinolenta. Entintando com rolos muito pequenos, que quebravam o tempo todo, com um calor típico. Nessa ocasião, eu, Ulysses e o Capi (2) trabalhamos juntos.
Quando vou para o ateliê, gosto de pensar que essas xilos só poderiam ser feitas naquela sobreloja, no ateliê em Santos. Posso testá-las lado a lado e recuar, percorrer as imagens, ir ao encontro da estampa. Fico sempre pensando na travessia do Amyr Klink. Para mim, uma performance náutica em escala global, onde as questões também estavam relacionadas a um projeto de vida. Desejo/técnica. A escala é, também, o tempo de uma ação que se desdobra em uma superfície. Sempre que início uma impressão, me arrependo, mas em poucos segundos o sentimento é de urgência e vontade de chegar à algum lugar; como se o papel esticado sobre a madeira fosse o meu oceano atlântico a ser percorrido, um arco de deslocamento físico sujeito à atmosfera. Quando preparo a folha de papel, gosto de pensar na vela do barco. Uma vela que irá ser estampada.
Qual a importância das cidades que você habita e seus fluxos no estabelecimento do trabalho?
Gostaria de aproveitar para confessar um desejo. Um desejo de civilidade de comunhão com um lugar. Os centros das cidades deveriam ter como vocação exclusiva a convivência entre as pessoas, e aqui não excluo relações comerciais, mas acredito que deveríamos recuperar os significados mais básicos e memoriais do que é habitar. Vejo claramente uma vocação para o bairro do Valongo: oficinas de todo o tipo, espaços de circulação, convivência e troca. Coisas básicas, como uma horta comunitária. O bairro não precisa de um Museu Péle, mas de diversos espaços expositivos, ateliês de criação das mais diversas fontes de conhecimento. Digo isso, por questões muito simples: não vejo outro lugar melhor para trabalhar. Mesmo suando como nunca para imprimir um pedacinho de papel, foi onde escolhi montar “um lugar”, um ambiente circundado de estímulos, imaginando‑o como um coral que filtra, devolve um fluxo de água e é poroso. Por enquanto, um dos aspectos muito positivos é o fato de ser a sobreloja de um pequeno prédio onde moram algumas famílias. No térreo, um galpão de café incrível erguido com areia de praia, pedra e óleo de baleia. É uma verdadeira obra!
Fale um pouco sobre o corte como gesto medido e/ou como medida do gesticular, como unidade do desenho.
Acredito que gosto de operar com os dois: projeto de corte e a ação da talha direta. O primeiro traz o gesto medido à partir de uma malha estruturante, um desenho, uma marca; o gesto e a talha vão ao encontro de uma informação já existente A talha direta é o gesto primal, no sentido que faz parte de um desenho que irá configurar-se. E cada ação traz a medida deste gesticular, que é corporal. A tensão para construir uma linha nessa escala, demanda esse jogo de corpo, no que para mim, constitui-se como um tablado de luta corporal ao nível do solo, onde o giro se dá em torno da matriz e a linha é construída em diversas direções. Uma coisa que lembro sempre, ao construir uma determinada área na matriz, é uma questão relacionada ao que ouvi do Evandro Carlos Jardim sobre a mecanização do gesto: me parece um jogo duplo, onde ser simplesmente “tarefeiro” leva o desenho à morte por asfixia, revelando uma imagem “estática”. É necessário manter uma certa atenção, e preservar uma franqueza, um frescor ao cortar; mesmo se carregado de insatisfação, manter-se aberto a renovação. Essa é a maneira com a qual encaro cada imagem, sem ter a certeza de que vá chegar a algum lugar.
Qual o papel da cor na sua gravura?
Sempre penso a cor como um elemento estruturante da imagem, onde gosto de imaginar uma luz que invade o ambiente dessa imagem com tanta autonomia que pode desfigurá-la, daí gerando outros valores e direcionamentos.
Sendo uma estampa tal e qual, utilizo alguns procedimentos que carrego de uma experiência com pintura antes da sedução pela madeira. A utilização de uma determinada cor é de certa forma intuitiva e relacionada justamente com o tipo de luz predominante no momento da feitura, da mistura das tintas e do instante da imagem. Por vezes, determinada mistura é preparada para determinado trabalho, mas ao término do preparo algo foi modificado, ou a própria cor acaba apontando para um uso em alguma outra imagem.
Gosto de trabalhar com a construção simultânea de alguns trabalhos, não muitos, mas três ou quatro que possibilitem um trânsito de informações entre eles, e que possa operar gerando contrapontos de forma e luz. Em meados de 2004, por ocasião da exposição no Centro Cultural São Paulo, onde mostrei duas estampas em grande formato, tive uma experiência muito interessante com o Sr. Carlos (sobrenome), que é um engenheiro químico, na produção de cores específicas para o centro de Santos. Ao longo de alguns meses, levava até seu laboratório amostras de paredes dos casarões, fotos e referências sobre o porto e o centro histórico na tentativa de produzir algo particular, para um contexto particular.
Surgiram as cores com nomes que aludem a determinadas referências que encontrava ao andar pela região: Amarelo Porto, Vermelho Índio, Azul Frontaria e Verde Mercado. Pensava que essa aproximação da cor e da matéria traria mais firmemente a atmosfera daquele contexto para a construção da imagem.
“O ateliê é um habite-se, a natureza de tudo e de cada coisa”. Palavras suas, sobre as quais gostaria de ouvir mais.
Gosto de pensar o ateliê como esse lugar/espaço a ser habitado, onde justamente o trabalho surge da relação entre o artista e cada coisa que o circunda: as ferramentas, as referências, as coleções de objetos, a paisagem. Para mim, habitar este lugar é o primeiro passo para construção da obra, onde mesmo nas tardes ociosas, olhando para as imagens penduradas na parede, ouvindo os pássaros, os ruídos da avenida portuária, sinto esse tempo conquistado e direcionado para uma ação poética. Um tempo que não pode ser medido em valores ou em produtividade, porque se refere a uma construção não linear, subjetiva e em certa medida auto-referencial. Referindo-se, sobretudo, a conquistas internas, da preservação do sonho e da beleza, da aceitação de si próprio e do outro.