A concha eloquente do coração

As sequên­ci­as de cha­pas de com­pen­sa­do dis­tri­buí­das pela sala for­mam pare­des de madei­ra gra­va­da. São rele­vos pin­ta­dos que con­quis­ta­ram auto­no­mia enquan­to obra, após encer­rar sua vida útil como matri­zes de gran­des estam­pas de xilo­gra­vu­ra. Em con­jun­to, alu­dem a nar­ra­ti­vas trun­ca­das, frag­men­tos de his­tó­ri­as, módu­los de tem­po, per­so­na­gens desa­lo­ja­das. Difi­cil­men­te clas­si­fi­cá­vel, A con­cha elo­quen­te do cora­ção amal­ga­ma ins­ta­la­ção, dese­nho, pin­tu­ra e escultura.

E não seria impró­prio dizer que tam­bém a lite­ra­tu­ra está pre­sen­te – o títu­lo da obra tem sua fon­te num poe­ma de Edmond Jabès: “O cora­ção é um arco no limi­ar da nos­sa era, uma con­cha elo­quen­te (para si mes­ma) entre os dedos da viden­te.” A escri­ta de Jabès tra­ta das ques­tões da ori­gem e do des­ti­no, enten­di­dos não como pon­tos fixos, mas como núcle­os que se movem. Assim como tam­bém são móveis e recom­bi­ná­veis as cha­pas de com­pen­sa­do da obra de Fabri­cio Lopez. Além dis­so, a poe­sia jabe­si­a­na cons­ti­tuiu-se como uma poé­ti­ca do estran­gei­ro, em que as idei­as de lugar, habi­ta­ção, ocu­pa­ção, iden­ti­da­de e per­ten­ci­men­to são inter­ro­ga­das. Tais ques­tões são comuns à poé­ti­ca de Fabri­cio Lopez, não enquan­to estran­gei­ro, mas como alguém que bus­ca apro­pri­ar-se de manei­ra cada vez mais ple­na de seus lugares.

O cen­tro velho de San­tos, a zona por­tuá­ria, as prai­as, o man­gue, são a foz das ima­gens que o artis­ta cap­ta e, pos­te­ri­or­men­te, trans­fi­gu­ra na obra. Um bar­co a pique, um men­di­go que dor­me na cal­ça­da, mari­po­sas, um pas­san­te com guar­da-chu­va. Per­so­na­gens algo goel­di­a­nas con­ti­das na con­cha da expe­ri­ên­cia pes­so­al e coti­di­a­na do mun­do. Porém não pro­te­gi­das por esse inte­ri­or: as figu­ras têm algo de des­gas­ta­das, imer­sas na cor­ro­são sali­na da mare­sia; a super­fí­cie da madei­ra cor­ta­da é uma car­ne sem sangue.

Na lom­ba­da de um dos mui­tos livros do ate­liê de Fabri­cio Lopez, lê-se o nome de Har­lan Hub­bard. Tam­bém essa rela­ção faz sen­ti­do: ambos os artis­tas, guar­da­das as dife­ren­ças de con­tex­to, têm na xilo­gra­vu­ra um meio de expres­são, e para ambos a pai­sa­gem com a qual con­vi­vem é fun­da­men­to de seu ima­gi­ná­rio. Em seus Diá­ri­os (1939), Hub­bard escre­ve: “Deve haver um equi­lí­brio per­fei­to entre o abs­tra­to e a rea­li­da­de em uma ima­gem. Cada for­ma, linha e cor deve ser par­te do pro­je­to e ain­da ser uma par­te efe­ti­va da ima­gem, ver­da­dei­ros para com a vida”. Tal dire­triz pode­ria ser vis­ta tam­bém na obra de Fabri­cio, em que dese­nho de obser­va­ção, ela­bo­ra­ção da for­ma e cri­a­ção poé­ti­ca con­flu­em para for­mar a imagem.

Priscila Sacchettin é pesquisadora de pós-doutorado no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). Doutora em História da Arte pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com estágio de pesquisa na Université Sorbonne/Paris Diderot. Possui graduação e mestrado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP)