Fabrício Lopez, a existência impura

Fabrí­cio Lopez é um dos mais impor­tan­tes gra­va­do­res bra­si­lei­ros, além de man­ter, com Flá­vio Cas­tel­lan, uma impor­tan­te ati­vi­da­de de ensi­no da gra­vu­ra no Ins­ti­tu­to Acaia, uma ONG que vem for­man­do jovens artis­tas mui­to promissores.

Sua mais recen­te expo­si­ção, que per­ma­ne­ce até 26 de agos­to na Gale­ria Marí­lia Razuk, tem qua­li­da­des pou­cas vezes encon­tra­das em expo­si­ções de estam­pas. Não é raro, sobre­tu­do em gra­vu­ras sobre metal, os artis­tas se encan­ta­rem com os pro­ce­di­men­tos téc­ni­cos – mui­tas vezes com­ple­xos – envol­vi­dos nes­ses tra­ba­lhos e per­de­rem-se num vir­tu­o­sis­mo que pare­ce resu­mir todos as limi­ta­ções das obras abs­tra­tas de pou­ca qualidade.

Des­de o come­ço de sua pro­du­ção mais madu­ra, por vol­ta de 1994, Fabrí­cio Lopez abre suas figu­ras de manei­ra fran­ca e deci­di­da, sem se dei­xar levar por um requin­te téc­ni­co que ten­de a se esgo­tar em si mes­mo. Na atu­al mos­tra sobres­sai uma espé­cie de cola­gem de ima­gens, obti­da pela sobre­po­si­ção dos dese­nhos de vári­as matri­zes, como se fos­se uma ope­ra­ção cubis­ta rea­li­za­da pela super­po­si­ção de memó­ri­as, olha­res e coi­sas imaginadas.

A simul­ta­nei­da­de de acon­te­ci­men­tos de ordem mui­to diver­sa, pois supõem rela­ções dis­tin­tas com a rea­li­da­de, pode pôr em con­ta­to um mer­gu­lha­dor, ânfo­ras e árvo­res. E uma arti­cu­la­ção meio suja, mas pre­ci­sa, con­se­gue dar às dife­ren­tes ima­gens um esta­tu­to que per­mi­te ao obser­va­dor expe­ri­men­tá-las em suas par­ti­cu­la­ri­da­des. De fato, uma árvo­re vis­ta se dife­ren­cia e mui­to de uma árvo­re relem­bra­da ou imaginada.

A mes­cla impu­ra de que é fei­ta nos­sa cons­ci­ên­cia adqui­re nes­sas obras uma repre­sen­ta­ção visu­al sedi­men­tar, uma orga­ni­za­ção pre­cá­ria (e veros­sí­mil) de acon­te­ci­men­tos que assi­mi­la­mos de for­ma total­men­te desi­gual. Afi­nal, a faca com que almo­ça­mos e a que nos fere, embo­ra idên­ti­cas, serão expe­ri­men­ta­das de modo mui­to diver­so. Tam­bém a roti­na e o tem­po depo­si­tam seus sedi­men­tos sobre fatos e coisas.

O que real­men­te tor­na esses tra­ba­lhos efe­ti­vos para o olhar – e não ape­nas mais uma nar­ra­ti­va maçan­te – resi­de na capa­ci­da­de de Fabrí­cio reve­lar visu­al­men­te esse alu­vião impu­ro de que somos fei­tos. E isso na pró­pria tra­ma de suas gra­vu­ras, tam­bém elas uma depo­si­ção um tan­to ale­a­tó­ria de ima­gens. Por esse moti­vo me pare­ce que as matri­zes pin­ta­das – que o artis­ta cha­ma “escul­tu­ras pin­ta­das” – têm uma menor capa­ci­da­de de reve­lar nos­sos pro­ces­sos de for­ma­ção. Nelas a simul­ta­nei­da­de se mos­tra ape­nas devi­do ao fato de as for­mas se dis­po­rem sobre a mes­ma superfície.

A ausên­cia das sobre­po­si­ções dá às vári­as regiões uma inten­si­da­de seme­lhan­te, o que é pou­co plau­sí­vel em rela­ção à expe­ri­ên­cia que temos do mun­do. Acre­di­to que tam­bém que os dese­nhos sobre folhas de ace­ta­to ficam aquém do nível geral da mos­tra, por redu­zi­rem a com­ple­xi­da­de de nos­sa rela­ção com a realidade.

Tudo isso con­si­de­ra­do, con­vém lem­brar­mos que, em geral, não somos todos Fran­kens­teins, embo­ra não fal­tem dese­qui­lí­bri­os de toda ordem entre nós. Como na gra­vu­ra com domi­nan­tes azul e mar­rom-cla­ro, algu­mas figu­ras sobres­sa­em, como as duas aves que pare­cem cair, aba­ti­das em ple­no voo, ou as rama­gens da par­te superior.

Feliz ou infe­liz­men­te não somos o que que­re­mos. A von­ta­de pre­ci­sa ope­rar num mun­do em que entram outras von­ta­des e uma rea­li­da­de espes­sa. Há seme­lhan­ça entre nos­so pro­ces­so de for­ma­ção e a téc­ni­ca da xilo­gra­vu­ra. O dese­nho que se tra­ça sobre a super­fí­cie da madei­ra não se dei­xa mar­car pela goi­va como um cír­cu­lo tra­ça­do sobre a areia.

Depen­den­do da madei­ra e do modo como a pla­ca de madei­ra foi obti­da (no jar­gão da xilo­gra­vu­ra, madei­ra de topo e madei­ra de fio), os resul­ta­dos numa gra­vu­ra serão diferentes.

Estou con­ven­ci­do de que a capa­ci­da­de de repre­sen­tar a com­ple­xi­da­de de nos­sos vín­cu­los com a rea­li­da­de advém mui­to da pró­pria for­ma­ção artís­ti­ca de Fabri­cio Lopez. Não foi pro­pri­a­men­te na uni­ver­si­da­de que ele encon­trou seu cami­nho e sim no tra­ba­lho cole­ti­vo no Espa­ço Corin­ga, no qual tra­ba­lha­va, entre outros, com Flá­vio Cas­tel­lan e Ulys­ses Bos­co­lo. Nes­se ate­liê, mui­tas vezes as xilo­gra­fi­as eram fei­tas a 4 ou mes­mo a 6 mãos. O esfor­ço para com­pre­en­der e dar con­ti­nui­da­de ao tra­ba­lho alheio tal­vez seja de fato a melhor manei­ra de apren­der a olhar gene­ro­sa­men­te o mundo.

Rodrigo Naves é crítico, historiador da arte e professor, com doutoramento em estética pelo Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.