Fabrício Lopez: vínculo e abertura

As gra­vu­ras de Fabrí­cio Lopez rea­li­za­das em gran­des com­pen­sa­dos e tábu­as pos­su­em uma esca­la monu­men­tal. Não se tra­ta de um tra­ba­lho que se diri­ge ape­nas aos olhos, mas a todo o cor­po e ao espa­ço ao redor. Do mes­mo modo, o pro­ces­so arte­sa­nal de gra­va­ção e impres­são exi­ge um esfor­ço cor­po­ral tre­men­do. Gran­des cha­pas de madei­ras são dis­pos­tas sobre o piso e sobre elas inci­de a for­ça e os ins­tru­men­tos do artis­ta, que lite­ral­men­te mer­gu­lha de cor­po intei­ro den­tro de cada matriz.

O modo como Fabrí­cio fixa os papéis impres­sos dire­ta­men­te na parede,montados por par­tes e cola­dos com pin­cel, é aná­lo­go ao dos car­ta­zes lam­be-lam­be tão recor­ren­te nos gran­des cen­tros urba­nos. Entre­tan­to, suas gra­vu­ras se afas­tam das refe­rên­ci­as à cul­tu­ra de mas­sa e aos anún­ci­os que inci­tam ao con­su­mo rápi­do. Ao con­trá­rio, seu tra­ba­lho exi­ge um con­ta­to pro­lon­ga­do e aten­to do públi­co, uma vez que é cheio de suti­le­zas e nada têm de ime­di­a­to e des­car­tá­vel. Cada xilo­gra­vu­ra sua pres­su­põe vári­as cama­das e sobre­po­si­ções de tons. As cores sus­ten­tam toda a com­po­si­ção tan­to na pai­sa­gem expos­ta no CCSP como tam­bém em outros pro­je­tos. Das cores bro­tam ima­gens eva­nes­cen­tes, íco­nes que pai­ram no fun­do e entre os pla­nos, que de vez em quan­do sobem à tona e vêm ao pri­mei­ro pla­no. É da rela­ção entre a super­fí­cie da ima­gem e suas cama­das mais pro­fun­das que sur­ge a com­ple­xi­da­de das estam­pas. Há em seu tra­ba­lho uma inten­sa rela­ção com a gran­de tra­di­ção moder­na da gra­vu­ra. Algu­mas de suas obras reto­mam incri­vel­men­te cer­tos ambi­en­tes som­bri­os e den­sos como os inven­ta­dos por Oswal­do Goel­di, mas numa esca­la e com uma gama de cores com­ple­ta­men­te diferente.

O tra­ba­lho que rea­li­zou para o Pro­gra­ma de Expo­si­ções 2011 do CCSP recor­re, de manei­ra dis­tin­ta, a outro gran­de artis­ta bra­si­lei­ro: Mar­ce­lo Gras­s­mann e seus expres­si­vos dese­nhos dos anos de 1940 per­ten­cen­tes à Cole­ção de Arte da Cida­de. O ima­gi­ná­rio de Gras­s­mann é reple­to de som­bras e seres fan­tás­ti­cos. O artis­ta entrou para his­tó­ria da arte não só por fazer par­te da nas­cen­te grá­fi­ca bra­si­lei­ra, mas pelas refe­rên­ci­as ao infer­no e ao bes­tiá­rio de Hie­rony­mus Bos­ch. Seu reper­tó­rio está liga­do ao uni­ver­so mági­co, mito­ló­gi­co e medi­e­val, sem­pre povo­a­do por demô­ni­os, figu­ras híbri­das e outros mons­tros pre­sen­tes em fábu­las e his­tó­ri­as tradicionais.

Os dese­nhos de Gras­s­mann esco­lhi­dos por Fabrí­cio dia­lo­gam indi­re­ta­men­te com sua pai­sa­gem no pai­nel em xilo­gra­fia. Esta­be­le­cer vín­cu­los e pro­vo­car emba­tes com tra­ba­lhos de outros auto­res é fun­da­men­tal nes­sa pro­pos­ta do artis­ta. O pro­je­to é fru­to de uma pes­qui­sa de Fabrí­cio no acer­vo abri­ga­do na ins­ti­tui­ção e, além de levar em con­ta as rela­ções for­mais e temá­ti­cas entre os tra­ba­lhos, tam­bém lida com ques­tões téc­ni­cas de con­ser­va­ção como quan­ti­da­de de inci­dên­cia de luz, vari­a­ção da tem­pe­ra­tu­ra e segurança.

No caso de Fabrí­cio, não se tra­ta ape­nas de usar obras con­sa­gra­das ou ins­ti­tu­ci­o­na­li­za­das como refe­rên­cia ou como pon­to de par­ti­da de seu pro­ces­so, mes­mo que o pro­je­to assu­ma um tom de home­na­gem a uma figu­ra cen­tral nas artes grá­fi­cas. Ao con­trá­rio, a rela­ção entre a sua xilo­gra­vu­ra e peças de auto­res como Gras­s­mann é cons­truí­da a pos­te­ri­o­ri. Esse pro­ce­di­men­to se apro­xi­ma do tra­ba­lho tra­di­ci­o­nal­men­te assu­mi­do pelo cura­dor. Cada obra, quan­do jus­ta­pos­ta à outra, adqui­re e doa sen­ti­dos. Isso se dá por­que obras de arte são tota­li­da­des aber­tas, elas se bas­tam em si mes­mo, mas dia­lo­gam tan­to com o que a cer­ca quan­to com quem a vê. Por isso o públi­co pode esta­be­le­cer uma série de pos­sí­veis liga­ções com o que con­tem­pla, não ape­nas rece­ben­do pas­si­va­men­te infor­ma­ções, mas assu­min­do um olhar ativo.

A xilo­gra­vu­ra de Fabrí­cio não se fecha em si mes­ma. Em vez de o artis­ta rei­vin­di­car algu­ma auto­no­mia, cons­truir um espa­ço neu­tro, ou ten­tar iso­lar os sen­ti­dos inter­nos do seu tra­ba­lho, ele se inte­res­sa pelos vín­cu­los que a gra­vu­ra pode esta­be­le­cer com o espa­ço em que é expos­ta. Fabrí­cio Lopez se inse­re na tra­di­ção da grá­fi­ca bra­si­lei­ra, não ape­nas reto­man­do a his­tó­ria e o tra­ba­lho de ran­des mes­tres, mas tam­bém abrin­do cami­nho para outras expe­ri­ên­ci­as, obras suas e de artis­tas que ain­da estão por vir.

Cauê Alves é professor do curso Arte: história, crítica e curadoria da PUC-SP e curador do Clube de Gravura do MAM-SP. Em 2011 foi curador do 32o Panorama da Arte Brasileira e curador adjunto da 8ª Bienal do Mercosul.