O Canto dos Pássaros ou A Canção Proibida

Obser­vo cada gra­vu­ra fei­ta pelo Fabrí­cio como o can­to dos pás­sa­ros de sua infân­cia. Um can­to escon­di­do nas árvo­res que estão ao redor da casa dos seus pais no alto do Mor­ro San­ta Tere­zi­nha em San­tos. São pin­tu­ras sono­ras que ele­vam ou que ador­nam o nos­so espí­ri­to não só pelo tama­nho das ima­gens pro­pos­tas por ele como uma ten­ta­ti­va; um dese­jo ala­do de abar­car toda a orla, toda a pano­râ­mi­ca de San­tos numa visão pri­vi­le­gi­a­da e total da geo­gra­fia da cida­de; do impac­to cau­sa­do pelo estuá­rio que cor­ta em dire­ção a Ser­ra do Mar e que divi­de o Por­to em duas peque­nas colô­ni­as: a do café, situ­a­da nos arre­do­res da Bol­sa e a dos esti­va­do­res; que moram em Vicen­te de Carvalho.

Como um uru­bu pla­nan­do sua­ve no alto do mor­ro seguin­do a cor­ren­te de ar, o artis­ta encon­tra uma espé­cie de geo­me­tria indus­tri­al que se alas­tra por toda a orla; por todo o hori­zon­te for­ma­do por guin­das­tes e gal­pões gigan­tes­cos; pré­di­os e casas tão fami­li­a­res quan­to o api­to do navio; ruas peque­nas e escu­ras simi­la­res aos cami­nhos cor­ta­dos por ele na madei­ra; tudo na ple­na obser­va­ção da vas­ti­dão da cida­de em fren­te ao o mar, cheia de cores. A cor é vis­ta aqui como uma for­ma anti­ga, eu diria até indí­ge­na de se man­ter ale­gre e viva.

Livre; uma arte plu­má­ria que encon­tra exa­ta­men­te o seu lugar com o uso da

xilo­gra­vu­ra, orga­ni­zan­do pri­mei­ra­men­te seu habi­tat pelas luzes, pelas nuvens e pelos pás­sa­ros e outras enti­da­des espe­ci­ais que pas­sam pelo seu ate­liê, que pas­sam pelo seu cor­po; que estão mer­gu­lha­dos na bos­sa das fer­ra­men­tas; como se real­men­te o artis­ta ao gra­var e estam­par pudes­se sair voan­do pela jane­la em dire­ção às cores que estão na luz do sol, que estão na ter­ra e nas fru­tas que foram camu­fla­das e comi­das pelas sombras.

Suas cores saem das árvo­res trans­for­man­do-se em pás­sa­ros. Sim, as cores pas­sam voan­do como tan­tos pas­sa­ri­nhos que habi­tam o ter­re­no bal­dio, ao lado do seu ate­liê. Pas­sam cor­tan­do. No mor­ro; as aves todas as manhãs se ali­men­tam num tra­pi­che de madei­ra pre­pa­ra­do pelo seu pai cheio de fru­tas: bana­nas, aba­ca­tes, laran­jas, pêras, maçãs e mamões. As cores são ser­vi­das como ali­men­to. Para o Fabrí­cio estas cores, estas memó­ri­as pas­sa­ram a cons­ti­tuir o vér­ti­ce de uma pin­tu­ra que encon­trou no sóli­do da estam­pa uma ori­gem no cora­ção. Ten­to repe­ti­das vezes olhar e me apro­xi­mar de cada xilo­gra­vu­ra para ouvir o flo­rim escon­di­do de um orni­tó­lo­go apai­xo­na­do por estes peque­nos espí­ri­tos da flo­res­ta: saí­ras, sanha­ços, gaviões, pás­sa­ros pre­tos, xexéus, trin­ca fer­ros, car­de­ais e tiés esta­be­le­cem um reper­tó­rio fan­tás­ti­co e infan­til em bus­ca de um dese­nho sim­ples, difi­cul­ta­do pelo tem­po e pela arqui­te­tu­ra de vei­os pre­sen­tes na maté­ria dura, com cla­ras rela­ções de cor e de pac­to plu­má­rio sonha­dor; ora leves; ora dema­si­a­da­men­te pesa­dos sobre a matriz. As matri­zes tam­bém são trans­por­ta­das de um lado ao outro do ate­liê como imen­sos vivei­ros. As cores, mes­mo sobre o com­pen­sa­do, per­ma­ne­cem em movi­men­to. Per­ma­ne­cem trans­por­ta­das da pale­ta de um pin­tor para um qua­dro, ouvin­do os pás­sa­ros can­tan­do no final da tar­de sobre o mor­ro. Can­tam para as mãos onde se depo­si­tam as for­ças. Can­tam nas tábu­as onde se colo­cam as cores fru­tí­fe­ras. Uma manei­ra espe­ci­al de enten­der a pin­tu­ra não como pin­tu­ra tra­di­ci­o­nal em tela ou cava­le­te, mas como um tipo de pin­tu­ra – estam­pa­da, ou seja, o cava­le­te é depo­si­ta­do no chão; o pin­cel é o aço das goi­vas e dos for­mões e a pin­tu­ra orga­ni­za-se no múl­ti­plo da xilo­gra­vu­ra sobre o papel. Toda a luz é com­par­ti­men­ta­da em ilhas, em canais aber­tos como trin­chei­ras em um ter­re­no povo­a­do pelas las­cas e não por res­pin­gos. A luz pas­sa pelas asas de um pás­sa­ro, pas­sa pelos seus olhos, pas­sa por uma esco­lha, um dese­nho; como se o pró­prio artis­ta par­ti­ci­pas­se dos ansei­os de Íca­ro de voar em dire­ção ao sol.

É impor­tan­te sali­en­tar tal fantasia.

Gra­van­do o Fabrí­cio alcan­ça suas inten­ções como pin­tor por que o gra­va­dor que pin­ta é aque­le que ele­ge a luz como prin­cí­pio para a sua ima­gem. Porém, é difí­cil de se obter a pas­sa­gem da cor como no efei­to pas­to­so – cor­pó­reo da tin­ta a óleo. Aqui ele res­pon­de aos cha­ma­dos da grá­fi­ca. Aqui a cor res­pon­de a par­ti­tu­ras com­pac­tas de for­ça mus­cu­lar que sul­ca, que divi­de, que cria obs­tá­cu­los reais que se depo­si­tam entre as unhas e secam como vernizes.

Duran­te a impres­são, a colher de pau seria a espá­tu­la usa­da para espa­lhar a tin­ta “ao aves­so”, ou seja, por trás do papel, o que tra­di­ci­o­nal­men­te na pin­tu­ra se faz pela fren­te, mol­dan­do a for­ma na tela como o pró­prio Ibe­rê Camar­go fazia, des­pe­jan­do o tubo de tin­ta na esgri­ma; pro­cu­ran­do os sonhos na mistura.

Tudo pela estam­pa cor­res­pon­de a um espe­lho, a um duplo mara­vi­lho­so de sig­ni­fi­ca­dos onde a ima­gem é trans­por­ta­da via for­ça, via von­ta­de con­cen­tra­da sobre o supor­te, lem­bran­do mui­tas vezes, o tra­ba­lho de um mari­nhei­ro esfre­gan­do dura­men­te o chão no con­vés de um navio.

Na xilo­gra­vu­ra, o pen­sa­men­to da gra­va­ção e da impres­são pos­si­bi­li­ta ao artis­ta dupli­car sua poten­ci­a­li­da­de sobre a cor, como um ver­da­dei­ro prisma.

A pin­tu­ra, atra­vés de um meio tão anti­go quan­to à xilo­gra­vu­ra galo­pa, embar­ca em uma nau em dire­ção a con­ti­nen­tes vir­gens e a pos­si­bi­li­da­des de

ima­gens pou­co explo­ra­das na sua tota­li­da­de. Seria pre­ci­so que alguém ras­gas­se um mapa remo­to. Seria pre­ci­so que um açou­guei­ro pudes­se imi­tar estra­nha­men­te o can­to dos pás­sa­ros, em luga­res pou­co freqüen­ta­dos por cava­le­tes. Seria pen­sar como pin­tu­ra, em ima­gens inco­muns; como um cen­tau­ro fle­cha­do por um bei­ja flor.

Ulysses Bôscolo, madrugada de 30 de maio de 2008.

É gravador, pintor e professor. Estudou Artes Plásticas na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) de 1996 a 1999 e cursou o Programa de Mestrado em Artes Visuais pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo) ECA/USP. É membro do Atelier Piratininga desde 2010