Habitar o lugar/espaço do ateliê como procedimento para a construção da obra – o desenho do espaço na xilogravura de Fabrício Lopez

Resu­mo: Este arti­go tra­ta das rela­ções entre espaço/ateliê/paisagem na cons­tru­ção poé­ti­ca visu­al do tra­ba­lho de Fabrí­cio Lopez.

Pala­vras-cha­ve: Pai­sa­gem, dese­nho, gravura.

Introdução

O tra­ba­lho aqui apre­sen­ta­do par­te de uma fala do artis­ta por oca­sião de uma expo­si­ção na Pina­co­te­ca do Esta­do de São Pau­lo em 2009, qual seja: “o ate­liê é um habi­te-se, a natu­re­za de tudo e de cada coi­sa”. Esta afir­ma­ção do Fabrí­cio Lopez me reme­teu a uma refle­xão de Anne Cau­que­lin em A inven­ção da pai­sa­gem (Cau­que­lin, 2007) onde ela cons­ta­ta a poten­cia das nos­sas viven­ci­as com a pai­sa­gem para o nos­so apren­di­za­do da rea­li­da­de e tam­bém a for­ça do enten­di­men­to do espa­ço da pai­sa­gem como invó­lu­cro de nos­sos humo­res e dese­jos. Refle­tir, bre­ve­men­te, sobre a rela­ção entre estas duas afir­ma­ções no pro­ces­so de cons­tru­ção das ima­gens de Fabrí­cio Lopez é o que se pro­põe este tex­to. Fabrí­cio Lopez nas­ceu em 1975, bacha­rel em artes plás­ti­cas pela FAAP em 2000 e mes­tre em artes visu­ais pela ECA/USP em 2009. Vive e tra­ba­lha entre San­tos e São Pau­lo, cida­des em que par­ti­ci­pou e par­ti­ci­pa ati­va­men­te na for­ma­ção e manu­ten­ção de ate­li­ês e espa­ços de pro­du­ção cole­ti­va como Espa­ço Corin­ga, Estú­dio Valon­go e Xiloceasa/tipografia Acaiá. Estas ações artís­ti­cas cole­ti­vas, como artis­ta e pro­fes­sor, desem­pe­nham papel impor­tan­te em sua cons­tru­ção poética.

1. Habitar: o espaço do ateliê e a construção das imagens

As ima­gens em peque­nas e gran­des dimen­sões (figu­ras 5 e 6), nas­ci­das do cor­te na madei­ra, do emba­te e deli­ca­de­za exi­gi­dos pelo meio, falam dos obje­tos guar­da­dos (figu­ra 8), pes­so­as, espa­ços e pai­sa­gens do coti­di­a­no do artis­ta. Mis­tu­ram-se mon­ta­nhas (figu­ra 1), estra­das (figu­ra 2), can­tos do ate­liê, flo­res, árvo­res e tam­bém pes­so­as que, de algum modo, habi­tam estes espa­ços. As pos­si­bi­li­da­des de repe­ti­ção e sobre­po­si­ção ofe­re­ci­das pela xilo­gra­vu­ra são ins­tru­men­to para agre­gar a ima­gem o des­lo­ca­men­to do artis­ta pelo espa­ço, entre cida­des e ate­li­ês e assim agre­gar a ima­gem tem­po e pro­fun­di­da­de. As pos­si­bi­li­da­des de sobre­po­si­ção, nes­te caso, tam­bém agre­gam um olhar inti­mo dos espa­ços retra­ta­dos, car­re­ga­do da ação de ocu­pá-los e conhe­cê-los . As sen­sa­ções espa­ci­ais cons­truí­das são inten­sas, nos levan­do a pen­sar que o encon­tro com o lugar, o espa­ço, a pai­sa­gem são deter­mi­nan­tes no nas­ci­men­to da imagem.

Por oca­sião da expo­si­ção na Pina­co­te­ca do Esta­do de São Pau­lo, 2009, em entre­vis­ta a Claú­dio Muba­rac, publi­ca­da no catá­lo­go, o artis­ta diz:

“O ate­liê é um habi­te-se, a natu­re­za de tudo e de cada coi­sa. Gos­to de pen­sar o ate­liê como esse lugar/espaço a ser habi­ta­do, onde jus­ta­men­te o tra­ba­lho sur­ge da rela­ção entre o artis­ta e cada coi­sa que o cir­cun­da: as fer­ra­men­tas, as refe­rên­ci­as, as cole­ções de obje­tos, a pai­sa­gem. Para mim, habi­tar esse lugar é o pri­mei­ro pas­so para a cons­tru­ção da obra, onde mes­mo nas tar­des oci­o­sas, olhan­do para as ima­gens pen­du­ra­das na pare­de, ouvin­do os pás­sa­ros, os ruí­dos da ave­ni­da por­tuá­ria, sin­to esse tem­po con­quis­ta­do e dire­ci­o­na­do para uma ação poé­ti­ca. Um tem­po que não pode ser medi­do em valo­res ou pro­du­ti­vi­da­de, por­que se refe­re a uma cons­tru­ção não line­ar, sub­je­ti­va, e em cer­ta medi­da auto­re­fe­rên­ci­al. Refe­rin­do-se, sobre­tu­do, a con­quis­tas inter­nas, da pre­ser­va­ção do sonho e da bele­za, da acei­ta­ção de si pró­prio e do outro.” (Lopez, Fabrí­cio. 2009: 41)

Na fala é evi­den­ci­a­da a inten­ção de que a ação no ate­liê seja orga­ni­za­da pela bus­ca que ori­en­ta as for­mas do tra­ba­lho, do dese­nho, pre­ser­va­ção do sonho e da bele­za. Habi­tar este lugar pare­ce sig­ni­fi­car pre­en­che-lo des­tes sonhos, vivên­ci­as e refe­ren­ci­as, ou melhor, ocu­pá-lo pela ação que garan­te a pre­ser­va­ção des­te sonho na imagem.

2. A paisagem: o espaço, invólucro de nossos humores e ações cotidianas

Em seu A inven­ção da pai­sa­gem, Anne Cau­que­lin faz uma refle­xão a res­pei­to do lugar das cons­tru­ções cul­tu­rais da pai­sa­gem nas nos­sas expe­ri­ên­ci­as for­ma­do­ras, no nos­so apren­di­za­do da rea­li­da­de. Em um movi­men­to de com­pre­en­der suas pró­pri­as refe­rên­ci­as cul­tu­rais de orga­ni­za­ção de uma ima­gem da pai­sa­gem e assim ques­ti­o­nar a “vera­ci­da­de” des­ta em rela­ção as suas vivên­ci­as visu­ais ela fala da potên­cia dos apren­di­za­dos que nas­cem das nos­sas rela­ções com o espa­ço a que orga­ni­za­mos, hie­rar­qui­za­mos e deno­mi­na­mos paisagem.

“A pai­sa­gem pare­ce tra­du­zir para nós uma rela­ção estrei­ta e pri­vi­le­gi­a­da com o mun­do, repre­sen­ta como que uma har­mo­nia pre­es­ta­be­le­ci­da, inques­ti­o­ná­vel, impos­sí­vel de cri­ti­car sem se come­ter sacri­lé­gio. Onde esta­ri­am, pois, sem ela, nos­sos apren­di­za­dos das pro­por­ções do mun­do e o de nos­sos pró­pri­os limi­tes, peque­nez e gran­de­za, a com­pre­en­são das coi­sas e a de nos­sos sen­ti­men­tos? Inter­me­diá­rio obri­ga­tó­rio de uma con­ver­sa­ção infi­ni­ta, veí­cu­lo de emo­ções coti­di­a­nas, invó­lu­cro de nos­sos humores1. (Cau­que­lin, Anne. 2007: 28)

Esta cons­ta­ta­ção, jun­to a com­pre­en­são de que nos­so olhar para a pai­sa­gem esta car­re­ga­do tam­bém das refe­ren­ci­as dei­xa­das por nos­sos ances­trais de suas obser­va­ções da pai­sa­gem, tra­zem mais alguns ele­men­tos para olhar­mos a expe­ri­ên­cia com a pai­sa­gem como dis­pa­ra­do­ra na cons­tru­ção da ima­gem no tra­ba­lho do Fabrício.

Conclusão

A ação do artis­ta que tra­ta o ate­liê como o habi­te-se, a natu­re­za de tudo e qual­quer coi­sa a ser vivi­do, guar­da­do e trans­for­ma­do poe­ti­ca­men­te é impreg­na­da da vivên­cia do espa­ço e do enten­di­men­to des­te como meio de com­pre­en­são da dimen­são de si e das coi­sas do mun­do. O ate­liê como habi­te-se, a natu­re­za de tudo, tam­bém pode ser pen­sa­do como a pai­sa­gem que é vei­cu­lo de nos­sas emo­ções, invó­lu­cro de nos­sos humo­res. Em uma outra fala da entre­vis­ta, con­ce­di­da para a publi­ca­ção do catá­lo­go, ele refor­ça a potên­cia das suas vivên­ci­as na pai­sa­gem prai­a­na da infân­cia e da lei­tu­ras de gibis e pro­du­ção de estó­ri­as como refe­rên­cia fun­da­men­tal para o tra­ba­lho como artista.

“Quan­do tinha uns 11 anos e íamos pes­car siri na praia, usan­do um puça, uma espé­cie de rede e gai­o­la com cer­ta isca espe­ci­al. Os mais novos da tur­ma, por livre e espon­tâ­neo con­ven­ci­men­to físi­co dos mais velhos, no caso eu e outros pre­mi­a­dos, devía­mos pas­sar na aví­co­la e pegar tri­pa de gali­nha. Às vezes, dáva­mos sor­te e só tínha­mos que enfi­ar o bra­ço em um latão cheio de res­to, ou, quan­do o latão esta­va vazio, o jei­to era enfi­ar a mão den­tro da gali­nha recém aba­ti­da. Todo esse rito valia cada siri pego na praia, em dias de pós res­sa­ca do mar, dias cin­zen­tos que ter­mi­na­vam na casa de um ami­go com a pane­la cheia. Para mim, a for­ma­ção em um sen­ti­do mais inte­gral esta atre­la­da com esse con­tex­to, da cida­de prai­a­na, da lei­tu­ra inten­sa de todo e qual­quer tipo de gibi, das horas soli­tá­ri­as dese­nhan­do e da pro­du­ção das minhas pró­pri­as his­tó­ri­as.” (Lopez, Fabrí­cio. 2009: 37)

Vol­to aqui a uma outra cons­ta­ta­ção de Cau­que­lin que nos fala da impor­tân­cia dos vín­cu­los afe­ti­vos, for­ma­dos por mui­tos sen­ti­dos e refe­ren­ci­as, da pai­sa­gem vivi­da na infân­cia na cons­tru­ção da ima­gem que for­ma­mos mais tar­de da paisagem.

Ynaia Barros é artista e educadora. Possui bacharelado e licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (2000). Realizou mestrado (2005) e doutorado (2010) na mesma instituição, na área de poéticas visuais.